quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

A pós-verdade é uma velha novidade; fact-checking, não

Se 2016 foi o ano da pós-verdade, o que vem depois? Tudo.
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uase 50 anos antes de a Universidade de Oxford considerar 2016 o ano da pós-verdade, a filósofa alemã Hannah Arendt publicava, em seuVerdade e Política, uma crítica à permanente ameaça da dissolução do conceito de fato. Ela relembra como a União Soviética sob o regime stalinista tentou apagar Leon Trotsky de registros fotográficos revolucionários, sob o pretexto de reescrever seus livros de história.
Esse tipo de comportamento, repetido como fundamento de sociedades totalitárias, ganha cores fortes em regimes da democracia contemporânea. A ausência de figuras que de fato representam uma sociedade coesa nos levam à outra extremidade do sistema político: a de ausência, pulverização ou anulação do poder.
Nesse vácuo, políticos sofisticaram o discurso mentiroso. Lá fora, lavam suas versões pouco populares da realidade nas redações de veículos partidários. Aqui no Brasil, o expediente foi exaustivamente explorado por meio de blogs progressistas, há pelo menos dez anos, e tenta agora tomar forma, de maneira mais sofisticada, a partir de páginas do Facebook sem figura jurídica determinada.
Em 17 de novembro, um grupo de mais de 20 organizações de checagem de fatos em todo o mundo divulgou uma carta endereçada a Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, para propor colaboração no combate à disseminação de notícias falsas na rede social. Depois de rejeitar qualquer tipo de influência na proliferação de informações errôneas, a empresa divulgou um pacote com sete ações para evitar boatos. Uma delas é associar-se a veículos de fact-checking para uma abordagem jornalística mais rigorosa.

Resultado de imagem para fact-checkingSe o Facebook é um dos principais difusores de informações em nível mundial, não é errado dizer que o futuro da checagem, em 2017, passa necessariamente pelas redes sociais. A ideia é transformar essas plataformasantes meros instrumentos de distribuição jornalísticae torná-las, fundamentalmente, fontes a serem investigadas.
Se a disputa política se trava ali, sob a chancela dos políticos cujos discursos costumamos monitorar, e a realidade como vemos é reproduzida em seu ambiente, é essencial a ocupação desse espaço de modo muito mais rigoroso do que já é feito. No Brasil, isso tende a se intensificar entre o fim de 2016 e o início de 2017. Aos Fatos, por exemplo, é o primeiro veículo brasileiro a receber o selo “Fact-Check” do Google, em uma primeira tentativa da empresa de tornar mais criteriosa a busca de informações confiáveis em sua principal ferramenta.
É no compromisso certificado pela International Fact-Checking Network que veículos autenticamente preocupados com a busca da verdade podem se basear. Longe de encerrar dúvidas, esses princípios englobam ações básicascomo a adoção de critérios de apartidarismo e de transparência de financiamentoque permitem que jornalistas exerçam seu ofício de maneira honesta entre seus pares e para o seu público.
É esse público, aliás, que sabe, graças aos quixotescos checadores, que Donald Trump é um mentiroso contumazou que candidatos a prefeito no Rio e em São Paulo cometeram erros em 75% das suas declarações durante a campanha de 2016. Estudos já provaram que isso faz diferença para consumidores de jornalismo em específicoe a sociedade, de maneira geral.
Para financiadores do jornalismo, também. Lá fora, investem em projetos como o do Le Monde, que está tentando automatizar parte de suas operações de fact-checking para corrida eleitoral francesa do ano que vem. Aqui, 2017 será um balão de ensaio tecnológico para as eleições nacionais de 2018. Há espaço (e tempo) para o desenvolvimento de aplicativos, publicadores,add-ons e bancos de dados inteligentes para municiar checadorese o jornalismo, de modo geralno combate à disseminação de mentiras nas redes.
Resultado de imagem para fact-checkingNo entanto, sem critério, a tentativa de combater notícias falsas pode ter um efeito colateral em 2017. No New York Times, John Herrman argumenta que a fixação ao conceito puro e simples de “notícia falsa” pode piorar a sensação de que rigorosamente toda investigação jornalística não tem mais credibilidade.
“O uso estenográfico do termo ‘notícia falsa’ certamente causará reação inversa dez vezes maior. A narrativa da notícia falsa, como compreendida e usada, já começou a abarcar não apenas histórias falsas e fabricadas, mas também um conjunto maior de veículos tradicionais no Facebook e em outras redes. Fox News? Notícia falsa. Afirmações enganosas de [Donald] Trump a respeito da geração de empregos da Ford nos Estados Unidos? Notícia falsa. Todos os veículos hiperpartidários do Facebook? Notícia falsa. Essa formulação ampla do termo será aplicada à mídia tradicional, que ainda não entendeu quão ameaçada está sua habilidade de classificar algo que é verdadeiro efetivamente como tal”, diz.
Quem se propõe a checar deve ter claro que há diferenças substanciais entre o que é verdadeiro e o que é falsoe honestidade para admitir que há um sem número de nuances entre esses dois extremos. Por isso, se é perigoso deixar que uma única corporação de viés monopolista tome a decisão de monitorar ou não boatos virtuais, também deve estar fora de cogitação a criação de uma espécie de “Índex do Real Jornalismo”.
Em 2017, começamos tudo de novo, sob os auspícios de uma velha novidade. É bom que se lembre, entretanto, da pós-verdade de Hannah Arendt: segundo ela, o perigo da substituição total da verdade factual por falsidades não significa que a mentira irá prevalecer. “Em vez disso”, escreve a autora, “vencerá o cinismo, que torna impossível a distinção do que é real e o que não é”.

Por Tai Nalon diretora de @aosfatos. política, jornalismo - Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2017. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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