- Alunos de colégios administrados pela PM não podem usar gírias ou usar batom e devem bater continência e marchar
- Motivada pela violência nas unidades de ensino, tutela da polícia é elogiada por pais de estudantes, mas criticada por especialistas

VALPARAÍSO. Um grupo de
adolescentes se perfila em formação militar, enquanto uma soldado armada os
passa em revista. Nenhum deles masca chicletes. As garotas não usam batons ou
esmaltes chamativos. Nas conversas não se toleram gírias. Todos são obrigados a
cantar o Hino Nacional na chegada, a caminhar marchando e a bater continência
diante do diretor. Não estamos num quartel, mas num dos dez colégios da rede
estadual de Goiás cuja administração começou a ser transferida para a Polícia
Militar desde janeiro, numa medida desenhada para amainar os repetidos casos de
violência ocorridos numa região desassistida a apenas 40 quilômetros do Distrito
Federal.
Duas das escolas sob o novo regime ficam nas cidades de
Valparaíso e Novo Gama. Ali, a maioria dos professores é a mesma do ano passado,
e a metodologia pedagógica continua sob responsabilidade da Secretaria estadual
de Educação. Mas o diretor de cada unidade é um oficial da PM, assim como a
equipe encarregada de manter a “ordem”. Todos fardados e com armas na
cintura.
A escolha dos colégios não foi em vão. O entorno do DF
convive com problemas crônicos de violência. Desde 2011, a Força Nacional de
Segurança Pública reforça o policiamento. Em Valparaíso, o Colégio Fernando
Pessoa já apareceu no noticiário policial depois que um ex-aluno foi assassinado
a tiros ali. Em outra ocasião, uma professora sofreu um sequestro relâmpago ao
sair do prédio.
'Operação limpeza' para conquistar comunidade
A vice-diretora do Fernando Pessoa, Glaucia Ermínia dos Santos, foi mantida
no cargo e afirma que o cenário “é outro” desde a chegada da PM:
— A questão disciplinar mudou gritantemente. Tínhamos
problemas de tráfico de drogas e prostituição. Professores tinham medo dos
alunos.
No Colégio José de Alencar, no Novo Gama, relatos semelhantes.
— Era tudo bagunçado. Tinha gente usando drogas nos
banheiros. Agora até o bairro está mais seguro. O melhor é sair e ver uma
viatura na rua — diz a estudante Erisvânia Chagas, de 15 anos.
Em ambas as unidades, um mutirão chamado de “operação
limpeza” foi posto em prática com o evidente intuito de conquistar a comunidade.
As paredes foram pintadas; as pichações, apagadas. Os próprios alunos se
tornaram responsáveis por sessões de vistoria nos banheiros e pela checagem da
sala: se tudo não estiver arrumado, ninguém sai. Até a lista de ausentes à aula
é compilada pelos estudantes, no caso um deles, o chefe da turma. Se um
professor falta, nenhuma turma sai mais cedo.
O código de conduta segue os moldes do que vigora nos colégios da Polícia
Militar de Goiás (CPMG). Até os cortes de cabelo devem obedecer a certos
padrões. Contato físico “que denote envolvimento de cunho amoroso” é
proibido.
— No início eu me revoltei, odiei. Hoje adoro, não troco por nada — sustenta
Luísa Roriz, de 16 anos, que estuda em Valparaíso.
O apoio entusiasmado pode esconder temor a repressão. O
código classifica como transgressão disciplinar grave “denegrir o nome do CPMG
ou de qualquer de seus membros”. Quem conversa com alunos percebe o receio que
têm de fazer críticas. Estudantes que davam entrevista ao GLOBO foram
interpeladas por uma policial da equipe disciplinar no momento em que uma delas
reclamava da exigência de ficar em pé durante solenidades.
— Não há dúvida de que a escola, para funcionar bem,
deve ter normas claras e ser exigente. Mas isso nada tem a ver com militarização
— critica Wanderson Ferreira Alves, professor de políticas educacionais na
Universidade Federal de Goiás (UFG). — Experiências exitosas no mundo fizeram o
caminho inverso, aproximando a escola da comunidade e horizontalizando relações
hierárquicas.
Frederico Marinho, pesquisador de segurança pública na
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), chama a transferência de escolas
para a polícia de “maquiagem ideológica”, “tentativa de doutrinação dos alunos”
e “aberração”:
— Não tem nada a ver com segurança.
Diretor do Colégio Fernando Pessoa, o capitão Francisco
dos Santos Silva defende o modelo adotado pelo governo de Marconi Perillo
(PSDB). Ele é formado em Pedagogia e foi professor da rede estadual antes de se
tornar policial. E diz que um dos objetivos é melhorar a nota da escola no
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), método avaliador do
Ministério da Educação.
— O caminho é simples: a disciplina consciente. A gente
faz (o aluno) pegar o gosto (pelo estudo). No sábado tem grupo de estudo na
biblioteca. Em breve, vamos começar um cursinho para o Enem (Exame Nacional do
Ensino Médio) — afirma. — Gírias como “ô, véio” não podem (ser empregadas). Aqui a
gente só usa a norma culta.
Diferentemente do que ocorre na rede pública, os
colégios da PM goiana (aos quais se somaram os dois de Valparaíso e Novo Gama)
cobram uma contribuição “voluntária” de R$ 40 a R$ 70 mensais. O dinheirodinheiro
é
administrado pela Associação de Pais da unidade e, segundo a PM, destinado a
melhorias na infraestrutura, em equipamentos e na contratação de professores de
reforço.

O Ministério Público em Valparaíso, contudo, acionou a Justiça no início do
ano, devido a informações de que o pagamento da taxa seria compulsório, assim
como a exigência de uso de uniforme, um kit de R$ 400. Uma liminar da Justiça
garantiu o caráter espontâneo da taxa.
O comandante de Ensino da PM de Goiás, coronel Júlio
César Mota, sustenta que houve um mal entendido e que a contribuição é
voluntária:
— Quando o pai percebe que a contribuição está transformando a escola, a
adesão é muito maior. Chega a 100% em algumas unidades.
O pedreiro Cleuber Bispo da Silva, de 44 anos, diz que faz questão de
pagar.
— Meu menino mudou de comportamento. Passou até a
arrumar mais o quarto — descreve o pedreiro, cujo filho, de 11 anos, está no 6º
ano do ensino fundamental do Colégio Fernando Pessoa.
O coordenador geral da rede Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel
Cara, avalia como “um desastre” o processo que está sendo registrado na rede
estadual de Goiás:
— Trabalhei em escolas públicas nas regiões mais
violentas de São Paulo e acompanhava as rondas que a polícia fazia. Elas já eram
temerárias... Imagine uma administração da PM! A polícia não faz bem nem seu
trabalho de segurança pública, que dirá educação. Essa medida reforça o
sentimento de desigualdade entre as escolas. É um instrumento antirrrepublicano.
Precisamos combater a desigualdade, não institucionalizá-la.
Outro a condenar a medida é o ex-comandante do Batalhão de Operações
Especiais (Bope) do Rio de Janeiro e antropólogo Paulo Storani.
— É a certificação do fracasso de um processo pedagógico
no Brasil. É aquele pensamento: “ah, não temos como resolver o problema? Então
chama a polícia”. Estão dando o gerenciamento da escola a um órgão que não tem
essa função — raciocina. — A população tinha uma expectativa, é o desespero de
querer qualquer coisa para melhorar uma situação. Pode melhorar em curto prazo,
porque cria disciplina, mas não resolve nada a longo prazo.
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