Se 2016 foi o ano da pós-verdade, o que vem
depois? Tudo.
uase 50 anos antes de a Universidade de Oxford considerar
2016 o ano da pós-verdade, a filósofa alemã Hannah Arendt publicava,
em seuVerdade e Política, uma crítica à permanente ameaça da dissolução
do conceito de fato. Ela relembra como a União Soviética sob o regime
stalinista tentou apagar Leon Trotsky de registros fotográficos revolucionários,
sob o pretexto de reescrever seus livros de história.
Esse tipo de comportamento,
repetido como fundamento de sociedades totalitárias, ganha cores fortes em
regimes da democracia contemporânea. A ausência de figuras que de fato
representam uma sociedade coesa nos levam à outra extremidade do sistema
político: a de ausência, pulverização ou anulação do poder.
Nesse vácuo, políticos
sofisticaram o discurso mentiroso. Lá fora, lavam suas versões pouco populares
da realidade nas redações de veículos partidários. Aqui no Brasil, o expediente
foi exaustivamente explorado por meio de blogs progressistas, há pelo menos dez
anos, e tenta agora tomar forma, de maneira mais sofisticada, a partir de
páginas do Facebook sem figura jurídica determinada.
Em 17 de novembro, um grupo
de mais de 20 organizações de checagem de fatos em todo o mundo divulgou uma carta endereçada
a Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, para propor colaboração no combate à
disseminação de notícias falsas na rede social. Depois de rejeitar qualquer
tipo de influência na proliferação de informações errôneas, a empresa
divulgou um pacote com sete ações para
evitar boatos. Uma delas é associar-se a veículos de fact-checking para
uma abordagem jornalística mais rigorosa.
Se o Facebook é um dos
principais difusores de informações em nível mundial, não é errado dizer que o
futuro da checagem, em 2017, passa necessariamente pelas redes sociais. A ideia
é transformar essas plataformas — antes meros instrumentos de distribuição jornalística — e torná-las,
fundamentalmente, fontes a serem investigadas.
Se a disputa política se
trava ali, sob a chancela dos políticos cujos discursos costumamos monitorar, e
a realidade como vemos é reproduzida em seu ambiente, é essencial a ocupação
desse espaço de modo muito mais rigoroso do que já é feito. No Brasil, isso
tende a se intensificar entre o fim de 2016 e o início de 2017. Aos Fatos, por
exemplo, é o primeiro veículo brasileiro a receber o selo “Fact-Check” do
Google, em uma primeira tentativa da empresa de tornar mais criteriosa a busca
de informações confiáveis em sua principal ferramenta.
É no compromisso certificado pela
International Fact-Checking Network que veículos autenticamente
preocupados com a busca da verdade podem se basear. Longe de encerrar dúvidas,
esses princípios englobam ações básicas — como a adoção de critérios de
apartidarismo e de transparência de financiamento — que permitem que jornalistas exerçam seu ofício de maneira
honesta entre seus pares e para o seu público.
É esse público, aliás, que
sabe, graças aos quixotescos checadores, que Donald Trump é um mentiroso
contumaz — ou que candidatos a prefeito no Rio e em
São Paulo cometeram erros em 75% das suas declarações durante a
campanha de 2016. Estudos já provaram
que isso faz diferença para consumidores de jornalismo em específico — e a sociedade,
de maneira geral.
Para financiadores do
jornalismo, também. Lá fora, investem em projetos como o do Le Monde, que está tentando automatizar parte
de suas operações de fact-checking para corrida eleitoral
francesa do ano que vem. Aqui, 2017 será um balão de ensaio tecnológico para as
eleições nacionais de 2018. Há espaço (e tempo) para o desenvolvimento de
aplicativos, publicadores,add-ons e bancos de dados inteligentes
para municiar checadores — e o jornalismo, de modo geral — no combate à disseminação de mentiras
nas redes.
No entanto, sem critério, a
tentativa de combater notícias falsas pode ter um efeito colateral em
2017. No New York Times, John
Herrman argumenta que a fixação ao conceito puro e simples de “notícia falsa”
pode piorar a sensação de que rigorosamente toda investigação jornalística não
tem mais credibilidade.
“O uso
estenográfico do termo ‘notícia falsa’ certamente causará reação inversa dez
vezes maior. A narrativa da notícia falsa, como compreendida e usada, já
começou a abarcar não apenas histórias falsas e fabricadas, mas também um
conjunto maior de veículos tradicionais no Facebook e em outras redes. Fox
News? Notícia falsa. Afirmações enganosas de [Donald] Trump a respeito da
geração de empregos da Ford nos Estados Unidos? Notícia falsa. Todos os
veículos hiperpartidários do Facebook? Notícia falsa. Essa formulação ampla do
termo será aplicada à mídia tradicional, que ainda não entendeu quão ameaçada
está sua habilidade de classificar algo que é verdadeiro efetivamente como
tal”, diz.
Quem se propõe a checar deve
ter claro que há diferenças substanciais entre o que é verdadeiro e o que é
falso — e honestidade
para admitir que há um sem número de nuances entre esses
dois extremos. Por isso, se é perigoso deixar que uma única corporação de viés monopolista
tome a decisão de monitorar ou não boatos virtuais, também
deve estar fora de cogitação a criação de uma espécie de “Índex do Real
Jornalismo”.
Em 2017, começamos tudo de
novo, sob os auspícios de uma velha novidade. É bom que se lembre, entretanto,
da pós-verdade de Hannah Arendt: segundo ela, o perigo da substituição total da
verdade factual por falsidades não significa que a mentira irá prevalecer. “Em
vez disso”, escreve a autora, “vencerá o cinismo, que torna impossível a
distinção do que é real e o que não é”.
Por Tai Nalon diretora de @aosfatos.
política, jornalismo - Este texto faz parte da série O Jornalismo no
Brasil em 2017. A opinião dos autores não necessariamente
representa a opinião da Abraji ou
do Farol Jornalismo.
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